Hoje é o Dia da Consciência Negra, o dia da morte do Zumbi dos Palmares. Dia para refletirmos sobre a dívida histórica que nós todos, como sociedade, temos para com os descendentes africanos. Dívida essa que hoje, pouco mais de um século após a Lei Áurea, ainda marginaliza e oprime as pessoas que compõem 54% da nossa população.
A cultura é algo aprendido, passado de pais, cuidadores e educadores para as crianças. A primeira infância, do nascimento aos 6 anos, é o período da vida de mais intenso aprendizado e desenvolvimento cerebral. Neste momento, entre aprendizados cognitivos e motores, eles estão descobrindo como o mundo funciona, como se relacionar, e vão criando uma base de valores e crenças que vão direcioná-los na maior parte da vida. É muito importante estar atento a quais referências essas crianças estão sendo expostas: como os adultos se comportam e que conteúdos a família consome.
Atualmente discute-se muito a importância da representatividade da diversidade social nos livros, desenhos, músicas, e qualquer outra mídia. Por isso hoje eu resolvi trazer como sugestão de leitura alguns livros infantis com protagonismo negro. Felizmente os títulos estão crescendo e a acessibilidade aumentando, mas ainda é um percentual muito baixo dentro do mundo da literatura infantil. Precisamos difundir e estimular essa produção literária!
Como dito acima, um dos principais pontos é a representatividade, e diferente do que algumas pessoas podem pensar, não é importante apenas para os menos representados terem figuras as quais se identificar, mas para todos! A representatividade tem como função normalizar as diferenças fenotípicas dos traços de negritude, como cabelo crespo, narinas, boca e cor da pele, evitar que outros valores como estética ou caráter sejam associados à essas características físicas. Sob essa perspectiva, separei dois livros que falam sobre o cabelo crespo:
Meu crespo é de rainha - Poema de bell hooks e ilustrações de Chris Raschka. Publicado originalmente em 1999 em forma de poema rimado e ilustrado, esta delicada obra chega ao país pelo selo Boitatá, apresentando às meninas brasileiras diferentes penteados e cortes de cabelo de forma positiva, alegre e elogiosa. Um livro para ser lido em voz alta, indicado para crianças a partir de três anos de idade - e também mães, irmãs, tias e avós - se orgulharem de quem são e de seu cabelo 'macio como algodão' e 'gostoso de brincar'.
Karu - Cabeça encaracolada, ideia descolada - escrito por Heliana Castro Alves e ilustrado por Gabi Moraes, Heliana Castro Alves e Maria de Lourdes Portella Sollero. Este livro conta a história de Karu, a menina negra de cabeça encaracolada. Um dia ela nasceu com uma ideia enrolada na cabeça que não parava de atrapalhar: por que na televisão a gente vê muito mais comerciais e programas com pessoas brancas? Por que na escola eu ganho apelidos chatos por causa do meu cabelo? Por quê? Karu passou por momentos muito difíceis até formular todas essas perguntas. Mas, numa certa tarde, acontece um encontro entre várias gerações, em meio a cantos, flores, mar de memórias e deliciosos carinhos na sua linda cabeça encaracolada. E nasceu, então, uma nova ideia... uma ideia descolada! Karu entendeu que cabelo tem história.
Para além da representatividade, os livros infantis podem fazer um resgate da história, da religião e da cultura africana, que foi silenciada durante o período escravocrata, a fim de tirar a humanidade das pessoas que foram sequestradas e trazidas pra cá. Os próximos dois títulos abordam o tema da ancestralidade, da cultura que permanece em rituais e tradições:
Meu avo é um tata - escrito por Janaína de Figueiredo e ilustrado por Bruna Lubambo. O meu avô é um homem muito sábio. Ele tem sensibilidade para compreender as pessoas e as forças da natureza. Além disso, a alegria de viver é o que rege a sua vida e ele compartilha isso com todos. O meu avô é um tata. O que é o seu avô? Alguns tem avô rabino, outros pastores, budistas, espíritas... este avô é um líder de religiões afro-brasileiras. Vamos visitar a sua casa e o seu universo?
Nós de axé - escrito por Janaína de Figueiredo e ilustrado por Paulica Santos. A fita, mais que uma simples fitinha, é uma janela para conhecer a Bahia, a festa e a lavagem da escadaria do Senhor do Bonfim. Ela me faz lembrar da história de meus avós, meus bisavós, tataravós, da minha própria história, enfim. Seu poder é muito, mas muito antigo. Pode-se fazer pedidos para ela e amarrá-la nos portões da igreja do santo. O tempo, apenas ele, tem o poder de realizar aquilo que se pediu. E quando a pulseira cai, a sorte lhe acena.
Não poderia deixar de fora livros que fazem o resgate dos orixás e também de outros contos da sabedoria popular africana:
Omo-oba: histórias de princesas - escrito por Kiusam Oliveira e ilustrado por Josias Marinho. Um livro que privilegia o recontar de mitos africanos, muito divulgados nas comunidades de tradição ketu, pouco conhecidos pelo público em geral e que reforçam os diferentes modos de ser femininos. Os seis mitos apresentados têm o objetivo de fortalecer a personalidade de meninas de todos os tempos.
Outros contos africanos para crianças brasileiras - escrito por Rogério Andrade Barbosa e ilustrado por Maurício Veneza. Neste livro o autor faz um resgate de contos da cultura africana, cujos temais são universais e tradicionais, adaptando-os ao jovem leitor brasileiro. Sua leitura permite às crianças conhecer uma pequena parte da cultura e sabedoria da África e sugerem novas formas de reconhecer a riqueza que nasce da diversidade. São narrativas simples, recolhidas da tradição oral; o primeiro explica porque a galinha d angola tem as penas pintadas e a razão de seu canto característico - 'tô fraca, tô fraca!' - e o segundo, o motivo de o porco ter o focinho curto. Divertem e ensinam, a um só tempo.
E como o dia de hoje foi estabelecido como homenagem à morte de Zumbi dos Palmares, trago dois livros em cordel: um, conta da vida dele e outro, de heroínas negras, incluindo Dandara dos Palmares:
Zumbi dos Palmares (em cordel) - escrito por Madu Costa e ilustrado por Josias Marinho. Este cordel é uma celebração do povo brasileiro: homens, mulheres e crianças, verdadeiros Zumbis na resistência diuturna por respeito às diferenças étnico-raciais.
Heroínas negras brasileiras (em 15 cordéis) - escrito por Jarid Arraes e ilustrado por Gabriela Pires. Desde 2012, a autora Jarid Arraes tem se dedicado a desvendar a história das mulheres negras que fizeram a História do Brasil. E não bastava conhecer essas histórias, era preciso torná-las acessíveis e fazer com que suas vozes fossem ouvidas. Para isso, Jarid usou a linguagem poética tipicamente brasileira da literatura de cordel. E vendeu milhares de seus cordéis pelo Brasil, alertando para a importância da multiplicidade de vozes e oferecendo exemplos de diversidade para as mulheres atuais.
Todas essas abordagens são importantes para combatermos o racismo e as desigualdades sociais. As crianças não nascem preconceituosas, elas aprendem os preconceitos. Todas as pequenas e sutis mensagens que emitimos a eles constroem esse padrão. E a desconstrução dessa estrutura é muito mais trabalhosa futuramente, e acredito que se você está lendo este texto, está trabalhando nisso agora.
Entre as minhas pesquisas e escutas sobre o racismo, uma fala sempre me toca: o cansaço da militância, e como muitas vezes só são convidados a falar quando é sobre racismo, sobre suas causas. Como raramente são convidados a falar sobre coisas triviais, sobre assuntos transversais que afetam a todos. Por isso que pra finalizar, quero deixar aqui dois livros com protagonistas negros, mas com temáticas comuns:
A mãe que voava - escrito por Caroline Carvalho e ilustrado por Inês da Fonseca. A pequena Alice gostava de assistir à mãe, que voava pela casa. Lá do alto da escada a mãe parecia voar junto com os pássaros, poderia mesmo tocar o céu.
Chapeuzinho e o Leão Faminto - escrito e ilustrado por Alex T. Smith. Certa manhã, tia Rosa acordou com o corpo cheio de pintas! Nesse caso, o que fazer? Ligar para a Chapeuzinho! Ao saber da situação, a menina se despediu do pai e correu para levar para a tia, em sua cesta, tudo o que ela precisava para se curar. Mas, no caminho, encontrou um leão faminto que bolou um plano para devorá-la. Ele chegou primeiro à casa da tia, escondeu-a no armário, disfarçou-se e ficou lá, esperando. Será que seu plano vai dar certo ou será que a Chapeuzinho vai pregar uma peça no leão? Nesse premiado reconto contemporâneo, uma menina cheia de vida mostra o valor do diálogo e da amizade.
Espero que curtam a leitura! Vários autores desses livros possuem outros, vale a pena dar uma pesquisada! Eu conheci muitos desses livros através de canais de Contação de Histórias! Não conhece? Confere aqui.
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