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Foto do escritorIsadora B. Esperandio

Rede de afeto: mãe de adolescente atípico

Esse artigo inaugura um novo espaço aqui no Cara de Tatu. Um espaço de escuta, de afeto e de conexão. Um lugar pra conversarmos sobre as individualidades, as particularidades das maternidades e das paternidades. Um lugar para expandirmos nossa visão de mundo, conhecermos outras realidades, acolhermos a pluralidade.


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Eu não poderia começar esse movimento de forma diferente, com outra pessoa que não a Pryscila. Ela é minha prima (praticamente minha irmã mais velha) e a primeira pessoa que eu acompanhei de perto tornar-se mãe.


Ela é mãe de um garoto que já tem 16 anos, um garoto atípico. Ele tem uma variante da Síndrome de Dandy-Walker, que resultou em uma má-formação do cerebelo. A síndrome foi diagnosticada ainda intrauterinamente e, desde o seu nascimento, ele foi acompanhado e assistido em todo o seu desenvolvimento para minimizar os possíveis sintomas.


E conseguiram. Quem não conhece o Heitor na intimidade nem imagina que ele possa ter alguma dificuldade. Mas ele tem. As alterações em seu cerebelo fazem com que coisas que são muito automáticas para nós, não são pra ele. Somado à isso, sem saber se tem origem na síndrome ou não, ele foi diagnosticado com TDAH.


Nessa nossa conversa que durou quase uma hora e foi cheia de indas e vindas - porque, além de eu não ser jornalista, nossa intimidade fez fluir um papo que escapou do escopo -, a Pry conta um pouco sobre as dores e delícias de educar um adolescente atípico.


Se acomoda na cadeira e relaxa, porque mesmo enxugando bastante, a conversa tá longa. Mas foi um mergulho gostoso, então vem com a gente!



Pry, vou começar perguntando qual a parte legal dessa fase adolescente?


A parceria, né? Você vai assistir um filme e não precisa mais escolher um filme infantil. Já pode introduzir outros assuntos, filmes com outras temáticas e conversar sobre isso. Por mais que ele saiba que pode conversar sobre tudo comigo, eu vejo que ele ainda tem algumas travas. Então os filmes funcionam como um gancho pra puxar alguns assuntos.


A parceria pra sair pra comer, levar em alguns lugares mais adultos. E a liberdade de escolher, agora não precisa mais levar em todo lugar junto. Se não quer ir, não vai.


Não acordar mais a noite também. Hahahaha! Faz sua própria comida, seu próprio lanche.


E qual a parte difícil de educar um adolescente?


É tudo! Tudo é difícil (rindo de nervosa). É que assim, o Heitor não é muito social. Ele é com as pessoas do convívio, com as pessoas que ele já tem intimidade. Então é difícil saber como ele se relaciona com as outras pessoas e o que eu posso abordar sobre isso com ele.


Acho que a parte difícil de ter filho adolescente é saber como orientar. Fora isso, eu acho que não tem. Com o Heitor, sinceramente, eu não tenho uma dificuldade. A minha dificuldade é a dificuldade dele: pela questão da síndrome, pela parte social dele, pelo déficit de atenção.


Então o que te preocupa mais é a aprendizagem e desempenho na escola e a parte social com os colegas?


Isso. Eu não me preocupo com essas coisas básicas que as mães se preocupam: do filho sair pra beber, do filho querer dirigir, usar drogas, essas coisas. Ele sabe que ele não vai poder beber, por exemplo. Ele vai ser um adulto que não vai beber, um adolescente que não vai beber. E ele tem muito medo.


Agora com relação ao aprendizado, ele se cobra muito. Tanto é que nesses últimos meses ele já teve crise de ansiedade por não conseguir suprir a demanda da escola. Às vezes ele cobra uma coisa que o próprio cérebro dele não pode dar e que ele não consegue fazer num tempo normal de outro menino da idade dele.


Então, ele já tá preocupado lá na frente. Ele tá preocupado se o curso que ele vai escolher vai ser bom para ele, se vai ser bom para vida dele, se ele vai passar no vestibular, se ele vai conseguir acompanhar os colegas da faculdade.


E eu não consigo tirar isso dele, sabe? Eu tento falar pra ele se preocupar com o hoje, deixar essas outras coisas pra amanhã, pra depois. Então as minhas preocupações são as preocupações dele.


Inclusive, esqueci de comentar contigo que esses dias eu acompanhei uma cena dele: estava preocupado em não se atrasar pra aula virtual e ao mesmo tempo queria se certificar em deixar a cozinha organizada e não fazer muito barulho pra não acordar quem ainda estava dormindo. Dava pra ver o esforço dele em fazer tudo isso.


Sim. Porque o que a gente faz no automático, pra ele tem que ser pensando. Só que isso gera uma ansiedade nele. Ele vive nessa pressão diariamente e é difícil pra nós, que não funcionamos desse jeito, compreender.


E ao mesmo tempo que eu entendo as limitações dele, eu não quero ser (e não sou) aquela mãe que fica passando a mão na cabeça. Mas quando eu vejo que ele tá num momento de sofrimento - porque isso é um sofrimento - eu interfiro. Então eu tenho que equilibrar um pouco as coisas. Eu sei quando eu posso deixar a louça pra ele lavar e quando não posso.


E o Heitor não fica usando isso como desculpa. Esse é um ponto positivo: ele tem

consciência das limitações dele. Só que ao mesmo tempo não consegue gerir essas limitações, o que causa muita ansiedade.


Há quanto tempo ele tem consciência da síndrome?


O Heitor só foi saber realmente da condição dele quando ele já tinha uns 10 ou 12 anos. Porque as idas aos médicos e neuro eram coisa de rotina. Pra ele era normal. Eu nunca cheguei para falar com ele assim: filho, você tem uma má formação cerebelar, você é assim por causa disso e daquilo. Não que eu escondesse, eu só não falava com todas as letras. Eu tinha medo de que ele usasse isso como bengala, para ser beneficiado.


Eu nunca falei para ele que ele não conseguiria fazer isso ou aquilo. Até porque como no caso dele é uma variante da síndrome, os casos clássicos são raros, a gente não tem o prognóstico. Desde o nascimento, cada fase era uma surpresa: será que vai sustentar a cabeça? Será que vai rastejar? Será que vai engatinhar? Será que vai andar? Será que vai falar? Aí começa a alfabetização: será que vai aprender a ler? Será que vai aprender a escrever? Será que vai somar?


Tem coisas que são mais desafiadoras, mas eu sei que ele consegue. Tem coisas que eu achava que ele não ia conseguir, como andar de bicicleta, por exemplo. Mas ele subiu na bicicleta e saiu andando, sabe? E tem outras coisas que é muito difícil para ele. Às vezes fechar uma Tupperware para ele é complicado. Então é uma caixinha de surpresa!


E quanto à parte social?


Ele gosta de pessoas em volta, mas ele não consegue interagir com elas. A gente até achava que ele tinha algum grau de autismo, no começo, e isso é um dos pontos da terapia dele. Ele também tem um assunto que ele gosta muito, que é carros. Então quando ele vai falar com os amigos, ele só quer falar sobre carro.


Ele não entendia que tinha que ser uma troca: escutar o amigo falar sobre alguma coisa que ele gosta, por exemplo futebol, e depois falar sobre o carro que ele gosta. Então ele não tinha muita essa paciência. Até porque quando a outra pessoa começa a falar alguma coisa que não interessa, ele desliga e viaja. E se manter focado toma muita energia. Igual na escola, as matérias que ele gosta e que ele não gosta. E aí quando ele percebe que ele tá sem atenção, ele fica se cobrando e desencadeia todo o ciclo da ansiedade.


Mas agora melhorou bastante, agora que ele tem mais consciência. E vou dizer que o Heitor, ele é muito certinho com as coisas. Então ele não gosta de algumas coisas que os colegas falam na escola, seja uma piadinha sobre o professor, sobre racismo ou algum desses pontos eu tento falar bastante com ele. Aí ele tenta dar um toque pro amigo, mas ele não tem muito filtro, muito tato e isso causa alguns atritos dentro da sala de aula.


Agora ele tem um amigo, muito amigo, que é o primeiro melhor amigo, de ir na casa dele. E esse amigo tem um irmão mais velho, então são dois meninos e eles são muito legais. Ele adora ir lá. Só que eu vejo também que como só esse amigo consegue entender o jeito do Heitor, ele fica muito preocupado com julgamento do amigo.


E você consegue conversar com outras mães sobre questões de adolescência?


Não, não tenho ninguém. Claro, eu converso com outras mães, só que é diferente os papos das mães típicas. Por exemplo, as tias do Heitor têm filhos com quase a mesma idade, são seis meses, um ano de diferença, mas as preocupações não são as mesmas. Não é que eu não consigo troca, mas não é o mesmo papo.


Como foi a relação do Heitor com seus relacionamentos amorosos após a separação?


Então essa é uma parte interessante. No começo foi difícil, porque o pai dele não aceitou bem a separação. O Heitor não conseguia entender como o pai dele que amava a mãe, que queria estar comigo e eu não queria estar com o pai dele.


Tiveram algumas situações que eu tive que explicar e que não foi fácil. Foi explicado em terapia também. Eu tive que falar que o pai dele já estava em um outro relacionamento monogâmico, que a mulher dele esperava fidelidade. Eu falei pra ele que tem vários tipos de relacionamentos, tem trisal, tem relacionamentos abertos, mas tem que ser o que é combinado com os dois. Que o certo é o que é combinado entre os dois.


Também falei sobre o meu corpo. Que ninguém pode tocar nele, ninguém pode fazer com ele o que eu não queira que seja feito. E que o pai dele não podia me abraçar e beijar se eu não quisesse. E então falei sobre assédio, estupro e outras coisas. Expliquei sobre as ações que você pode entrar, que medidas que você pode tomar quando o teu direito não é respeitado.


Então quando o Heitor começou entender isso, aí sim. Aí ele começou a entender que a mãe é uma pessoa que pode ser feliz com outra pessoa. E em todos os namoros que eu tive o Heitor sempre me apoiou. Ao contrário do que se esperava, né? Ele se deu bem com todos os meus namorados e ele até me incentiva nesse lado. Já até me aconselhou em um término: mãe tem que fazer o que te faz feliz.


Eu falo bastante também da questão do sexo. Se é feito com respeito, se é feito com amor, se é feito com consentimento. Para não fazer com que o sexo também que seja visto como uma coisa suja. Tem que ter consciência corporal, tem que ter consciência do que você gosta, do que você sente, e não fazer só para agradar o outro. Tem que ser uma troca, tem que tá bom para todo mundo. E que vale tudo, desde que seja o combinado dos dois.


A gente conversa sobre tudo, mas eu sei que ao mesmo tempo é desconfortável pra ele. E mãe não é amigo, né? Mas o que precisa falar, ele fala. E eu também, sobre tudo. Falo de ciclo menstrual, sobre métodos anticoncepcionais, sobre ele. Falo tanto da questão do corpo do menino, mas principalmente da mulher, porque ele vai lidar depois com mulheres. E eu sempre uso eu como exemplo, como referência.


E o Heitor não é do abstrato. Ele tem que ver, olhar, né? Então eu tento trazer essa parte de educação sexual mais pra prática. E também, por exemplo, vai que na escola tem um menino mais afeminado ou uma menina mais masculinizada, que acabam sendo motivo de piada. Então converso bastante sobre sexualidade com ele. E sempre de boa, nunca tive nenhum problema com o Heitor quanto a isso.


Acabamos entrando em outra pergunta que eu tinha. Só pra arrematar, então: quais são os valores que você se preocupa em passar pro Heitor?


Todos os possíveis. Risos. A questão da honestidade, digo honestidade de sentimentos até sabe? Dizer o que você realmente sente e não se sabotar. Ser educado, ser respeitoso. Independente de qualquer coisa, de qualquer pessoa. Se é idoso, se é hetero, se é gay, se é negro, se é branco... a questão do respeito. De se respeitar e respeitar o outro.


E você costuma buscar informação na internet?


Sim. Eu tô sempre fuçando em alguma coisa. Eu procuro mais a questão do TDAH mesmo. A questão também de motricidade, a parte cognitiva, coisas assim, mas mais esse lado de tentar me colocar como uma pessoa com TDAH. O neuro dele também de vez em quando me manda alguns links, algumas informações, alguns livros. Assim como psicóloga dele.


Quais são as suas referências de maternidade?


Eu tenho como referência, por exemplo, a tua mãe. Porque o que vocês tiveram, por exemplo, horário pra estudar, um lugar para estudar, são coisas que eu não tive e que ninguém a minha volta tinha. Então eu não sabia que isso poderia ser feito, entende? Então algumas referências de educação e de comportamento, eu tenho da tia.


Eu leio bastante, como eu falei para você sobre TDAH, sobre comportamento, sobre neuro, e sigo vários profissionais nas redes sociais, mas não sigo nenhum pai ou mãe, X ou Y.


E tem mais alguma coisa que eu não abordei e que você queira falar?


É muito engraçado que depois de adulta, a criança que eu acompanhei, foi a minha afilhada. E eu fico muito encantada com as coisas que ela faz, porque com o Heitor foi tão difícil. E as coisas que eu aplicava com o Heitor, nas estimulações, eu aplicava sem querer ou até conscientemente com ela. Mesmo “não precisando”. Porque precisa, toda criança tem que ser estimulada. E agora, ela tem seis anos, ela dá bronca no Heitor, ela cobra do Heitor. Ela lembra de cada coisa... tem uma memória de elefante! É claro, a gente não quer comparar, mas é muito engraçado ver uma criança típica e uma atípica.


E até sobre os seus amigurumis: você entende que tem toda a parte sensorial, a parte de estimulação e tal... e aí eu fico pensando, será que foi por tudo que você viveu, que você viu com o Heitor ou realmente porque você pesquisou? Ou é uma junção?


Certamente uma junção!


Eu fico pensando: caramba, eu precisava tanto disso quando o Heitor era pequeno! Eu fui procurar no brique da Redenção. O que eu rodei atrás de quebra-cabeça de madeira, sabe? E agora tem tanta coisa que eu queria. Tudo que eu olho agora, eu lembro ainda das necessidades que eu tinha e não encontrava. Tá vendo, agora tem isso aqui!


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Fico tão feliz que você tenha acompanhado todo o nosso papo!


E se essa conversa te tocou em algum lugar, sinta-se à vontade pra deixar seu comentário aqui embaixo! Você também nos encontra nas redes sociais (tem link no rodapé da página)!


Entre e seja bem-vindo pra essa conversa!

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