Em cada encontro com as mães que participam da Rede de Afeto, me surpreendo com o desenrolar das conversas, com os mergulhos que damos nos assuntos e como as conversas se entrelaçam. É sempre tão agradável que a conversa rola solta e se estende, sendo necessárias grandes edições para não ficar extenso demais para vocês.
Se é a sua primeira vez por aqui, a Rede de Afeto é um espaço de escuta, de afeto e de conexão; um lugar pra conhecermos as histórias de diversas mães e conversarmos sobre as particularidades de cada uma.
Essa é a nossa quinta conexão e como muitas experiências foram compartilhadas e achei que não dava pra deixar nada de fora, resolvi dividir essa conversa com a Diana em três partes.
Eu a conheci na graduação da biologia. Além de trabalharmos no mesmo laboratório de pesquisa, também participamos do coral da Universidade juntas. Depois de graduada, ela decidiu ingressar em um novo curso: medicina.
Diana entrou na medicina com 25 anos, casada e, logo em seguida, engravidou do seu primeiro filho. Começou a compartilhar no seu Instagram conteúdos a respeito de parto e outros aspectos da maternidade com muito embasamento científico, mas também com a perspectiva da sua experiência.
Hoje, Diana tem 3 filhos, Timóteo (5 anos), Ana Lívia (3 anos) e Estevão (1 ano), e está prestes a concluir o curso. Conversamos sobre as diferenças e particularidades das três gestações e também sobre os desafios encontrados para conciliar a maternidade e um curso tão tradicional. Nessa primeira parte, vamos falar sobre os seus relatos de partos.
Prepare seu chazinho, sente-se confortavelmente, abra seu coração e vem com a gente!
No teu perfil do Instagram, tu fala sobre parto e sobre obstetrícia. O direcionamento para essa área veio da tua experiência de maternar?
Eu não lembro bem certinho. Medicina não era um curso que eu sempre quis, então eu não pensava em especialidade. Mas eu lembro que antes de entrar na medicina, eu já gostava bastante dessa parte da obstetrícia. Eu lembro que eu assisti aquele documentário "O renascimento do parto" no cinema aqui em Porto Alegre. Então, eu já tinha interesse por esse assunto, já gostava bastante. Já pensava que eu ia ter filhos.
E eu sempre gostei de lutar contra o que está posto. Bom, na biologia eu gostava da questão ambiental e é mais ou menos isso. Esse vontade de mudar as coisas que estão erradas. Eu comecei o curso de medicina e logo em seguida eu engravidei. Aí comecei a estudar mais ainda, a me preparar para o meu parto e ver a realidade, principalmente de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul, e como é triste.
Eu lutei muito pra conseguir tentar ter um parto normal. E o primeiro foi normal, mas foi cheio de intervenções desnecessárias e violências veladas. Mesmo eu indo muito atrás, me informando, estudando, não consegui ter o parto ideal que eu queria. Com certeza isso me motivou muito a cada vez estudar mais, a me doar mesmo.
Inclusive comecei com o perfil do Instagram porque várias vezes vinham me perguntar como tinha sido a minha experiência de parto. Ainda que eu não consiga compartilhar muito, porque não consigo muito tempo pra escrever, e, quando eu escrevo, faço uns textos enormes. Risos. Mas com certeza a minha experiência me impulsionou a mergulhar de cabeça no assunto.
Bom, você já adiantou um pouco, mas eu queria te perguntar como foi essa preparação, se você estudou sobre maternidade durante a gravidez.
Com certeza. E eu vejo que, pra mim, hoje é tão fácil chegar numa informação, mas lá no primeiro ano da faculdade, quando eu engravidei a primeira vez, era muito difícil. Eu não sabia onde procurar informação, eu não sabia com quem falar, eu me sentia totalmente perdida.
A minha única referência era aquele filme, “O Renascimento do Parto”, e naquela época não tinha no Instagram tanto conteúdo. Era mais no Facebook, e mesmo naqueles grupos de Facebook não tinha muita referência. Tinham relatos de parto, mas não tinham profissionais falando sobre o assunto.
Aí fui atrás da OMS [Organização Mundial da Saúde], mas muito abstrato. Não tinha toda essa discussão que hoje tem nas redes. Hoje tem muito mais. Tu começa a pesquisar e quando tu vê tem muitos perfis falando sobre o assunto. E lá no primeiro ano não tinha.
Esses tempos mesmo eu tava pensando: “ah, porque que no primeiro parto eu não consegui me preparar o suficiente pra não cair na mão da pessoa que eu caí?” Mas daí eu fiquei lembrando como foi a trajetória: eu estudei bastante, fui atrás da informação, mas não foi o suficiente porque não tinha tanta informação disponível ainda. Hoje eu acho que já tem bem mais.
No primeiro, eu caí no conto do “obstetra fofinho”, o famoso "tipo humanizado". Aquele que diz que vai fazer o teu parto normal. O que já é de se estranhar, porque um obstetra falar que vai fazer o teu parto é uma coisa que não desce, né? Quem faz o parto é a mulher.
Eu já tava cansada de procurar profissional, já tinha passado por uns cinco. Chega uma hora que tu quer encontrar uma. Decidi: “essa aqui é que vai ser a minha obstetra” e fechei as portas pra procurar mais. Consegui ter parto normal e serviu de experiência. Hoje eu não tenho mais o sentimento de negação, sabe? Consegui trabalhar bem. Até porque depois vieram os partos mais legais, e serviu de aprendizado. Hoje olho pra profissional que me atendeu no primeiro parto e fico mais aliviada por ver que ela está num caminho de desconstrução da formação tradicional que ela teve, espero que ela não pare de se atualizar e melhorar a assistência dela.
É importante conseguir olhar pra trás e ver que tu fez o melhor que podia com a experiência e conhecimento que tu tinha. Porque apesar de não fazer tanto tempo, teve uma mudança gigantesca na quantidade de informação de antes pra agora. Eu lembro que, por exemplo, a primeira vez que eu ouvi falar de doula, era como se fosse algo meio clandestino, sem embasamento. Parto domiciliar, doula, enfermeira obstetra foram termos que eu fui entender recentemente. Porque existe um tabu, como se fosse mesmo de bruxaria, uma coisa de fora da ciência.
Quando o parto foi pra dentro do hospital, aconteceram esses fenômenos, né? Patologização de uma coisa que é fisiológica. Tornou patológico o parto, além da medicalização. Então a mulher não pode sentir dor, dor é uma coisa horrível. Bom, depende do contexto, né? O parto tem dor, mas tu tá recebendo uma vida, então não necessariamente é sofrimento. Você não tem que resolver aquilo. E aconteceu todo esse fenômeno de tornar o parto centrado no médico, então todos os outros profissionais que deveriam estar envolvidos foram escanteados.
Profissionais e pessoas, né? O parto antes, como evento familiar, tinha várias pessoas envolvidas da família. Essa doula, ela cumpre o papel das mulheres que estavam sempre juntas no parto. A mulher nunca pariu sozinha. Sempre tinha quem tivesse ali dando aquele apoio emocional. Ao tirar do ambiente familiar, a gente tirou essa troca que havia entre gerações.
Hoje em dia é muito difícil uma mãe chegar pra filha e contar como foi o parto. A minha mãe, por exemplo, ela não gosta que eu fale isso, mas ela nunca entrou em muitos detalhes sobre os partos porque ela não queria me traumatizar com os partos violentos que ela sofreu. Até porque são histórias muito traumáticas, né? Depois que entrou pro ambiente hospitalar, as mães não quererem falar sobre porque elas não querem relacionar um evento tão lindo, maravilhoso, com tanto sofrimento, tanta violência. Então é por isso também. É uma forma de calar, né? A violência cala as pessoas.
Eu li um texto esses dias que não era relacionado ao parto, mas falava de violência, que eu achei muito interessante. Dizia que muitas vezes a gente apoia quem nos violenta, às vezes a gente até defende ativamente essa pessoa, pra gente não reconhecer que a gente sofreu essa violência. Dizer que é normal, que é assim mesmo, é uma forma de evitar olhar pra própria dor.
É dolorido demais, é muito difícil. Tem até muitos relatos que tu vê a pessoa agradecendo. Eu mesma, no primeiro parto, eu agradeci muito a obstetra logo após o parto porque eu não tinha bem a dimensão do que tinha acontecido, e eu agradeci por ela abreviar a minha dor do expulsivo com uma episiotomia, hoje sei que não existe indicação pra esse procedimento e que ela poderia ter oferecido outras alternativas pra que meu parto fosse mais tranquilo.
E aí tu conseguiu fazer diferente nos teus outros dois partos.
Isso. Quando eu vi o filme “O Renascimento do Parto”, eu fui atrás de equipes, de obstetras que diziam ser humanizados aqui em Porto Alegre. E aí eu só cheguei em dois nomes, e esses dois nomes estavam de férias na data provável do parto do Timóteo, que foi o primeiro filho. Por isso que eu tive que correr o mundo atrás de outro obstetra. Aí encontrei essa "tipo" humanizada.
Quando foi pro segundo parto, de novo, na data provável de parto da Ana Lívia, elas também estavam com data programada de férias e não podiam me pegar como paciente. Aí eu fui atrás de novo. Dessa vez eu encontrei a Luísa, que trabalhava com a Karla, uma das profissionais que já era bem conhecida pelo parto humanizado. Dei sorte! Consegui ter um parto super bom.
O segundo parto geralmente é mais tranquilo mesmo porque teu corpo tem aquela memória do primeiro. Esse foi mais rápido. A doula estava em casa comigo e quando eu cheguei no hospital, eu já estava com 9-10 cm de dilatação, já tava praticamente no expulsivo.
Mas eu me desesperei um pouco no final, porque eu tava em casa, aí tu chega no hospital e a ansiedade vai lá em cima, cortisol sobe só de trocar de ambiente. E quando cheguei lá, não tinha uma sala de parto vazia. Tive que ficar numa sala de preparo para cesárea, onde tinham vários casais esperando pra cesárea me olhando. E eu "AHHHHH". E os casais olhando pra mim e pensando "coitada". E eu gritando. E eu morrendo de dor. Então eu acho que isso fez eu me desesperar um pouco no final, no expulsivo.
Eu mesma forcei um expulsivo não natural, não fisiológico, né? Eu fiquei forçando pra ela nascer e acabei me passando. Mas a obstetra foi maravilhosa, ela me respeitou totalmente, o pré-natal foi muito tranquilo, tudo bem certinho.
E no terceiro, foi parto domiciliar. Nesse, o diferencial foi que eu me preparei pro expulsivo. Eu falei: “dessa vez eu quero que o expulsivo seja leve, que eu consiga esperar o meu corpo fazer a força e não eu forçar”. Porque no segundo foi isso, eu não esperei o meu corpo ter o trabalho de expulsar. Eu comecei a fazer força, do tipo: quero acabar com isso aqui.
Aí eu tive consulta com fisioterapeuta pélvica no preparo pro parto. E foi muito bom! Porque nas consultas ela te diz o que tu vai pensar no expulsivo e como tu vai respirar. É claro, a força que tu faz no expulsivo, teu corpo já sabe fazer. Só que como tu já tem experiências prévias de trauma, experiências prévias de tu ter que fazer uma força que tu não quer fazer, e como os médicos induzem o puxo, aquele negócio de ficar dizendo "faz força”, “força de cocô", então tu acaba não deixando teu corpo fazer o que ele sabe fazer. Ou então, tu vê cena de parto de filme ou de novela e tu já vai pro teu parto com aquela ideia de que no final tu vai ter que fazer uma força enorme. E não é tu que vai fazer, teu corpo faz sozinho.
Tem muita gente que fala que não precisa ensinar a mulher a fazer o expulsivo, que não precisa ensinar a mulher a fazer força. Realmente, não precisa. Teu corpo sabe fazer. Mas como a nossa mente já tá poluída com tantas ideias erradas, a gente precisa limpar isso, né?
E aí na fisioterapia pélvica foi isso que ela fez. Ela conversou comigo, ela usou também um equipamento, o Epi-No, que infla uma bolinha no canal vaginal e tu tem a sensação da cabeça da criança e como é a força que tu tem que fazer. Nossa, isso foi muito bom! Na hora que eu tava na consulta e ela fez, eu quase chorei. Eu falei: “nossa, todas as mulheres deveriam ter a oportunidade de fazer porque é realmente a sensação que tu tem quando o bebê tá nascendo”.
E aí eu lembro que durante o parto, no final, eu consegui deixar meu corpo fazer o que tinha que fazer e não me desesperei. E consegui fazer a respiração corretamente. O terceiro parto pra mim foi perfeito. E foi em casa, né? Foram vários aprendizados. Foi bem legal.
Eu já tinha ouvido falar da fisioterapia pélvica, mas eu achei muito interessante isso que tu falou. Que tu não precisa ensinar o corpo da mulher a fazer o parto, mas tu precisa preparar a mulher pra saber o que vai acontecer com o corpo dela. Pra ela justamente não se assustar, não se desesperar, não fazer coisas que ela achava que deveria estar fazendo, mas que não precisa.
É. No primeiro parto, inclusive, eu me lembro que eu me apavorei no expulsivo. Primeiro, porque a obstetra não deixou eu ficar na posição que eu queria, eu tinha que ficar deitada naquela posição ingrata. E depois, porque achei que eu tava há muito tempo no expulsivo, eu fiz umas 3 forças e eu achei que já era demais e eu me desesperei. Mas não é.
E eu pensei “O que eu tô fazendo com o meu bebê?” E daí ela parou e disse: “Calma Diana, tá tudo bem! Não tem problema!” Mas eu não sabia. Até chegar ali eu não sabia. Eu achei que se eu fizesse 5 forças e ele não nascesse tinha alguma coisa errada. E aí se tu se prepara antes, tu sabe que é normal, que pode demorar, que não tem tempo máximo de expulsivo.
Tem muita gente que acha que tem tempo máximo, que não pode ficar tanto tempo. Mas não, o que vai mandar ali na conduta é se o bebê tá bem ou não. Eu não sabia e me desesperei. Acabei aceitando uma episiotomia por causa disso, porque eu tava desesperada achando que o bebê tinha que nascer. A médica podia ter oferecido várias coisas e ela ofereceu justamente isso.
E esse tipo de situação que mostra a importância do profissional. Porque você é uma pessoa leiga, em um momento do desespero, numa situação que tu nunca viveu na tua vida. Tu tá morrendo de medo por ti e pela criança. E tu espera que a profissional te dê as melhores instruções, as melhores alternativas. Se ela te disser que tu precisa fazer uma cesárea, tu vai acreditar na pessoa porque ela é tua fonte.
E é muito injusto que a mulher precise se preparar tanto, precise tanto ir atrás de informação. É muito injusto isso. Porque o certo era a gente poder confiar no profissional que estudou pra isso. Tu tem um infarto, tu não vai ter que estudar tudo sobre cardiologia, tudo sobre as medicações pra poder saber se o teu médico tá conduzindo da forma correta. O certo é tu poder confiar no profissional.
E aí tem muitas pessoas que tem boa intenção, mas falam assim: “o melhor pré-natal que tu faz é a informação. Tu tem que te informar.” Realmente, mas também não dá pra colocar esse peso todo nas costas da paciente. Porque tem paciente que nem tem condições ou tempo disponível de ir atrás disso, e tem gente que não gosta mesmo. Tipo, eu quero curtir a minha maternidade, minha gestação, eu não quero ficar me estressando com isso. E tá no direito dela!
E nesse misto de indignação e esperança por profissionais melhores, por partos mais humanizados e por maior acesso à saúde e dignidade das gestantes, terminamos a primeira parte da nossa conversa.
Fico tão feliz que você tenha acompanhado todo o nosso papo!
Mas ainda tem muita coisa pela frente: os desafios em maternar enquanto estudante de medicina e também mais aspectos da sua maternidade tripla! Aguarde as próximas edições da Rede de Afeto!
Além disso, a Diana tem alguns textos publicados no seu blog, para ler acesse: ELA Diana Letícia.
E se essa conversa te tocou em algum lugar, sinta-se à vontade pra deixar seu comentário aqui embaixo, claro com carinho e respeito! Você também nos encontra nas redes sociais (tem link no rodapé da página)!
Entre e seja bem-vindo pra essa conversa!
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